Jung e a Neurobiologia

No início do século passado, quando Carl Gustav Jung formulou suas teorias sobre arquétipos e inconsciente coletivo, não poderia supor que, quase cem anos depois, elementos da moderna neurobiologia emprestariam fundamento às suas idéias. Naquela época, a partir da observação das manifestações delirantes e alucinatórias dos pacientes do Hospital Burghozli, na Basiléia, onde era assistente de Eugen Bleuler, notou que os temas e imagens dos sintomas psicopatológicos tinham enorme semelhança com temas míticos de todas as culturas de todas as fases temporais da humanidade. A partir de então, passou a estudar profundamente mitologia, antropologia, sociologia, literatura, etc. Percebeu que o desenvolvimento psíquico obedecia padrões também encontradiços na evolução das culturas e que havia, no que concerne ao modo de funcionar psiquicamente, um traço comum a todos os seres humanos, um fio diretor, um padrão organizador da consciência individual e coletiva. No presente artigo, tentarei, de forma bastante sucinta, estabelecer correlações entre as idéias do grande psiquiatra suíço e alguns modernos estudos de neurociência. Introdução Neurobiológica A partir dos gametas, as células sexuais, que carregam 23 pares de cromossomos que contém toda a herança genética dos pais, forma-se o zigoto, ou óvulo fecundado, com 46 pares de cromossomos. A contínua divisão deste, vai formar os mais diferentes e especializados tecidos, aparelhos e sistemas que vão constituir esta maravilhosa e complexa “máquina” que é o ser humano. Quando enfocamos a parte somática, fica extremamente fácil entendermos a herança genética. Afinal todos temos olhos e narizes que são muito parecidos mas nunca iguais. Obedecemos um padrão de formação de nossos fenótipos, o que nos caracteriza como espécie, embora guardemos uma singularidade que nos faz únicos. Da mesma forma se comporta o psiquismo. Herdamos, como espécie, um modo de desenvolvimento comum a todos, herdamos potenciais para funcionar, porém cada um de nós constitui um universo psíquico singular. Na diferenciação celular, a placa embrionária externa invaginar-se-á, formando o tubo neural, que será a base para a formação do sistema nervoso central. No centro do tubo, logo nas primeiras semanas da vida embrionária, inicia-se a neurogênese ou formação de neurônios, cujo crescimento máximo ocorre em torno da 20ª semana e praticamente se completa no 6º mês da vida pré-natal, prolongando-se por toda a vida, embora de forma muito menos intensa e em áreas específicas, como os hipocampos. Da 4ª semana até o nascimento, acontece um intenso movimento de migração neuronal. Os neurônios recém-formados viajam longas distâncias e enviam seus axônios e dendritos para ocuparem os lugares certos nas seqüências certas. Há uma inacreditável convocação química para orientar este processo. As neurotrofinas são substâncias que protegem e orientam a migração e fixação e também selecionam os neurônios. A 60 milionésimos de metro por hora eles viajam para seus destinos apropriados, fixam-se e enviam seus axônios e dentritos para conectar outros neurônios. As neurotrofinas vão atraindo ou repelindo os cones terminais crescentes até que o destino final (velcro molecular) seja atingido. A “pavimentação” da estrada é feita pelas células gliais. A grande “tarefa” é formar sinapses que durante toda a vida serão revistas, feitas e desfeitas, conforme a demanda do cérebro. A sinaptogênese perdura por toda a vida, assim como a mielinização e as ramificações (arborização). Obviamente a arborização neuronal é muito mais intensa até o final da adolescência, quando o cérebro, já maduro, necessita maior estabilidade. O SNC (sistema nervoso central) tem cerca de 100 bilhões de neurônios, faz mais de 100 trilhões de sinapses e, em alguns casos, 10000 sinapses individuais para cada neurônio. 90% dos neurônios formados durante a vida fetal cometem “suicídio apoptótico” após o nascimento. De 1 trilhão ficam apenas 100 bilhões mais adaptados e funcionais, por eliminação competitiva, devido a um processo pré-programado denominado “Morte Celular Programada”. Por volta dos 5 a 6 anos de idade, existem mais sinapses que em qualquer outro período da vida. Até o final da adolescência o cérebro “remove” (Poda das Conexões Sinápticas) metade das conexões existentes. A seleção adequada leva à maturação saudável, enquanto seleções ruins vão propiciar transtornos psicopatológicos. Alterações na sinaptogênese podem proporcionar o substrato para o aprendizado, a maturidade emocional e o desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras durante a vida. O “exercício mental é importante para a manutenção da plasticidade (por maior demanda de fatores neurotróficos). A inatividade pode resultar na “poda de sinapses enferrujadas”. Todo este processo de “arquitetura” cerebral vai implicar, necessariamente, para seu funcionamento, na Neurotransmissão, que pode ocorrer por contigüidade como se fosse um complexo diagrama de “fios” enviando impulsos para suas conexões. O impulso elétrico do 1º neurônio se transforma em químico na sinapse através do neurotransmissor, e volta a ser elétrico nos receptores do 2º neurônio. Pode ocorrer também por volume ou difusão, quando os neurotransmissores difundem-se para locais distantes da sinapse (em outros receptores compatíveis) por “baforadas” químicas num determinado raio de ação. Quando analisamos o aspecto temporal, observamos que existem sinais de início rápido que alteram em milissegundo o fluxo de íons. Tomaremos como exemplos o Glutamato que é um neurotransmissor excitatório e o GABA que é inibitório. Os sinais de início lento desencadeiam cascatas bioquímicas que podem durar horas ou dias (serotonina, noradrenalina, dopamina). Sob a ótica da função constatamos eventos pré-sinápticos, onde o DNA comanda, através do RNAm, a síntese de proteínas (fabricação de neurotransmissores, enzimas, etc) e a abertura e/ou fechamento de canais iônicos e, consequentemente, eventos pós-sínápticos. Sendo liberado, o neurotransmissor procura seus sítios-alvo (receptores) e desencadeia uma “cascata” de eventos bioquímicos que vão “ligar ou desligar” genes que por sua vez vão sintetizar novas proteínas. O DNA também pode “ordenar” a destruição das proteínas. O DNA contém todas as informações necessárias para mediar a formação, o fortalecimento ou a desconexão de sinapses, rápido crescimento e movimentação de axônios e dendritos. Alterações na expressão gênica levam a modificação nas conexões e nas funções neuronais. Portanto, os genes podem modificar o comportamento. Toda ocorrência mental resulta de uma função cerebral. O aprendizado e as experiências ambientais também podem modificar os genes que serão expressos e, por conseguinte as conexões neurais. Os genes modificam o comportamento e o comportamento modifica os genes. Se o fluxo normal da neurotransmissão leva ao desenvolvimento, maturação e funcionamento cerebral sadios, a neurotransmissão anormal provoca doenças. O conhecimento sobre os problemas moleculares que acarretam no arranjo dinâmico dos neurônios e na neurotransmissão pode explicar características de personalidade, aptidões, diferenças de gênero, de inteligência, de memória, habilidades motoras e doenças. As hipóteses modernas apontam no sentido de que os genes e seus produtos sejam influenciados por fatores ambientais na gênese da personalidade. A Visão da Psicologia Analítica O ser psíquico tem sua base em duas estruturas do SNC que regularão, em sua relação entre si, o funcionamento mental. A grosso modo, o sistema límbico rege a vida instintivo-emocional e a neocórtex rege a vida racional. É importante observar que as amígdalas, responsáveis por todos os “disparos emocionais”, já estão completamente formadas ao nascimento, enquanto que seus “filtros naturais”, os hipocampos, que estruturarão as memórias racionais, só o estarão por volta dos 5-6 anos de idade e o “grande operacionalizador” do psiquismo, o córtex pré-frontal, só vai estar inteiramente pronto na adolescência, o que propicia algumas defasagens interessantes. O início da vida psíquica é constituído de conteúdos puramente coletivos, pertinentes à espécie. O Inconsciente Coletivo nada mais é do que o conjunto de arquétipos que contém o padrão organizador do desenvolvimento psíquico. Estes potenciais são hereditários, assim como os que regem o desenvolvimento corporal. O arquétipo é, portanto, um conceito genético. É uma predisposição, um potencial para funcionar psiquicamente. O desenvolvimento individual se processa segundo os mesmos padrões da evolução cultural. Os mitos são a expressão cultural do inconsciente coletivo. As figuras mitológicas podem ser entendidas como a própria expressão dos arquétipos, padrões organizadores da consciência individual e cultural. A grande “tarefa” é formar consciência (ego) sobre 4 pilares fundamentais: o ambiente, o corpo, a própria psique e o social. O ego se estrutura recolhendo dados cada vez mais complexos. A estruturação visa a adaptação à realidade externa, tomando um caminho socialmente aceitável, através da “Persona” (conjunto de papéis estruturados pela tradição cultural). Veicula os símbolos sócio-sintônicos. Os símbolos não assimiláveis (sobrecarregantes ou sócio-distônicos) vão constituir o inconsciente pessoal ou “sombra”. Depois de percorrido o caminho da estruturação, onde se afastava cada vez mais do inconsciente, o ego tende a novamente aproximar-se deste, no sentido de exercer sua criatividade e consolidar sua individualidade.Todo o caminho da consciência, iniciado no nascimento e terminado na morte, é denominado Processo de Individuação, que compreende fases evolutivas (dinamismos arquetípicos), que constatamos serem as mesmas ocorridas na evolução cultural. Os Dinamismos Arquetípicos O Dinamismo Urobórico é regido diretamente pelo arquétipo central, caos primordial, vivência unitária, onde praticamente não há consciência. O Dinamismo Matriarcal é regido pelo arquétipo da “Grande Mãe”, consciência lunar, princípios da natureza, fertilidade, nutrição e prazer. O Dinamismo Patriarcal é regido pelo arquétipo do “Grande Pai”, consciência solar, princípios do espírito, organização e da lei. O Dinamismo da Adolescência é regido pelo arquétipo do “Herói”, conflito entre os arquétipos parentais e os de “Anima e Animus”. O Dinamismo de Alteridade é regido pelos arquétipos de “Anima e Animus” e “Conjunctio”, princípios de igualdade e interação criativa dos opostos. O Dinamismo Cósmico é regido pelo arquétipo do “Velho Sábio” (arquétipo central), princípios da sabedoria e busca do significado para todo o processo. Os dinamismos, apesar de evolutivos, não se excluem, continuando sua função estruturante. Ocorre apenas a troca da regência arquetípica. Símbolo Estruturante Toda vivência externa ou interna é experimentada de forma simbólica e serve ao propósito de estruturar a consciência. A capacidade de integrar o símbolo à consciência e discriminá-lo adequadamente confere à personalidade um funcionamento sadio. Se não há condição de assimilação saudável, o símbolo é envolto por mecanismos de defesa, permanecendo inconsciente e formando a “Sombra Patológica”, causadora de sintomas psicopatológicos, atuações, atos falhos, etc. A “Sombra Patológica” resulta de uma impermeabilização do eixo Ego-Self (altos níveis de cortisol aumentam a atividade da amígdala e diminuem a do hipocampo). Os sintomas são a expressão da ação da “Sombra Patológica” sobre a personalidade, através dos mecanismos de defesa (projeção, negação, repressão, racionalização, deslocamento, etc., além das defesas psicóticas). O “EGO” regride aos pontos de fixação. Quanto mais arcaicos, mais graves os sintomas. As defesas, embora resultem numa conduta precária, protegem o EGO do colapso ou da fragmentação. A partir da farmacoterapia e da psicoterapia, velhas memórias implícitas (inconscientes) podem ser reformuladas pela criação de novas rotas neuronais. As vias neuronais provenientes do córtex pré-frontal e do núcleo da rafe tem um efeito moderador sobre a amígdala excitada. A psicoterapia opera, provavelmente, através do córtex pré-frontal, e os medicamentos via rafe, promovendo neuroplasticidade com aumento de fluxo e metabolismo, comprovados pela neuroimagem. A natureza regressiva da relação transferencial permite o acesso e a ação da palavra sobre as memórias implícitas emocionais (amigdalianas). Estudos recentes demonstram que medicamentos antipsicóticos, estabilizadores do humor, antidepressivos e ansiolíticos, além de suas ações específicas, possuem efeito neuroprotetor, evitando a neurotoxicidade que leva à atrofia e degeneração neuronal promovidas pelo estresse crônico. Os tratamentos mais eficazes, os que propiciam maior neuroplasticidade, em menor tempo, são os que combinam farmacoterapia e psicoterapia. Os símbolos provenientes do inconsciente coletivo possuem uma extraordinária carga desintegrativa, mas por outro lado, são a fonte de toda a criatividade humana.

Marcos Gebara

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